Este foi um dia de experimentação. O carvão é um material curioso. De figura tosca, quase bruta, aparentando troncos de árvores sub desenvolvidos, zangados por terem sido decepados, negros. No entanto, contestando toda esse preconceito, este material é de uma enorme sensibilidade.
Tal pode bem ser comprovado no seu uso. O riscar é tão suave que o som é quase inexistente, e o traço, ao contrario da rigidez do lápis, quase que parece desprender-se do papel. De tal forma que é necessário fixá-lo com um outro produto.
Muitos dos alunos ainda não tinham experimentado este material, a maioria gostou, a maioria estranhou.
O carvão está algo cheio de contrariedades, a tal rudeza em oposição leveza, que acima referi, mas também o facto de não poder ser apagado com uma borracha convencional, sendo que precisa obrigatoriamente de ser fixado, de forma a que não fuja, quebra-se com enorme facilidade, mas ainda assim luta com todas as forças para não desaparecer.
Todas estas especificidades técnicas são interessante, bem como o são as reacções de pessoas que nunca o usaram e o fizeram pela primeira vez.
No entanto, o que pretendo reforçar nesta crónica trata um caso muito particular. O desenho que coloquei no principio mostra duas tentativas de desenhar uma peça, no caso particular, uma bilha de leite.
O senhor Hermínio, o autor deste desenho, é o aluno com mais idade do grupo. Confidenciou-me que não sabe ler, conseguindo ainda assim assinar o seu nome. Mais que isso, nunca na vida havia desenhado. Foi portanto com normalidade que encarei o facto de nas primeira aulas, nos primeiros exercícios, ele mal tocar num lápis e muito menos usar o mesmo para rabiscar. No entanto, eu sabia, sem saber muito bem justificá-lo, que ele iria conseguir, o dia ia chegar em que esse medo fosse suplantado pela vontade.
Foi no carvão, com este desenho, o tal que acima postei, que tive a prova disso.
Não pretendo analisar a qualidade do desenho, de longe. É evidente, está muito pequeno, demasiado, em comparação com o tamanho da folha, está cheio de hesitações, tanto a primeira como a segunda tentativa, as linhas não estão direitas, seguramente muito pouca gente avaliaria este objecto como sendo uma bilha. Mas isso é totalmente desprezível. o importante para mim aqui foi o erro. O assumir do erro, e o voltar a tentar, a existência de uma segunda tentativa, sabendo que a primeira não poderia nunca ser eliminada.
Reparem, para quem nunca havia desenhado numa vida de mais de 80 anos, chegar a uma quarta aula, dada por um miúdo, ter a coragem de usar um material novo, assumindo na própria folha o erro e a respectiva tentativa de o emendar, assumir que ao fim de uma vida inteira havia ainda hipótese de mostrar que há coisas que não aprendeu, assumindo-o, perante outras pessoas que mal conhece, perante o tal miúdo que felizmente sou eu, para mim este é um dos maiores actos de valentia e bravura que já tive a oportunidade de presenciar, e caramba, ainda bem que o pude presenciar.
Poderia a partir daqui tentar moralizar toda a situação e o que ela representa. No entanto, prefiro assumir o meu próprio analfabetismo momentâneo, não há muito mais que possa, aliás, que consiga acrescentar. Tudo o que disse foi, a meu ver, mais que suficiente para enobrecer o acto do senhor Hermínio que só por si não precisa de muitos mais adjectivos que o adornem.
Começo a questionar-me quem realmente está a aprender neste projecto, os alunos ou o professor.
Ah, e a mim, parece-me, muito sinceramente, uma bilha.