quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Diário de bordo #11 - 19-01-2017 O ciclista louco em vias de extinção


Tomemos por momento a figura do louco. Será ele capaz de conduzir uma bicicleta?
Terá o louco a decência de se julgar são o suficiente para percorrer uma distância em Quilómetros, de viajando, ter a capacidade do Homem "normal" de apreciar a paisagem que o vai ladeando e avançando em sentido inverso ao do movimento das rodas da bicicleta que, vá lá saber-se porque devaneio inexplicável, aparenta conseguir guiar?
Os loucos devem estar fechados em casa. Trancados dentro de cimento. Betão não, pois é mais perigoso, perigoso demais para um louco. Um louco não sabe lidar com betão, nem com madeira, nem tão pouco com tijolo. O louco só sobrevive no cinzento plano do cimento.
O louco não deve percorrer quilómetros mas sim metros. A escala de vida que o louco percorre deve ser curta. Não excessivamente curta, não vamos querer ser preconceituosos para os loucos, mas curta o suficiente para não nos darem muito trabalho a médio-longo prazo.
O louco não deve medir nada por escalas. Ele meramente se deve deixar cingir a tomar comprimidos e acatar ordens.
O louco não guia, é guiado. Seria impensável considerar um louco com vontade. A vontade é só para os outros.
Ora senão vejamos estes o quão diferentes e melhores são estes "outros", os tais que guiam os loucos, os sábios, os inteligentes e os "normais". Eles conduzem o seu carro para o trabalho, apreciam paisagens com afinco, muitas vezes tendo inclusive a inteligência, a capacidade incrível de observar essas tais paisagens, no mesmo dia, vejam só, tão diversas como casinos de Las Vegas ou florestas tropicais da América do sul, isto porque os Homens "normais" têm acesso a redes sociais, à Internet, a um pc, tudo impossibilidades para um louco. Que parvoíce viajar e gastar dinheiro para um sítio tão longínquo quando podemos estar de pantufas a observá-lo interminavelmente? Quanto muito, um louco tem o direito de observar paisagens de livros que lhes são entregues, por, ora nem mais, pelos Homens "normais".
A escrita. O Homem "normal" tem essa incrível capacidade, a de escrever. Nem digo tanto prosa ou poesia, isso nos dias que correm são documentos pré históricos. A história nova é da escrita virtual, a de poucas frases e palavras encurtadas. Que inteligentes e sobretudo práticos que são estes novos Homens "normais", poupam tempo, dizem o essencial em meia dúzia de palavras, aprimoraram aquilo que antes demorava tanto tempo, dava trabalho e para pouco servia.
E como podria esquecer-me da conquista suprema deste novo Homem "normal": o assassínio do romance. Ser romântico? Só se for louco. Hoje, com a nova história do virtual, basta escolher com a ponta dos dedos. Curioso, ainda há umas décadas, o toque com a ponta dos dedos servia precisamente o mesmo propósito, o da conquista amorosa. No entanto, agora tocam-se em ecrãs, ao passo que antes era em pele. Felizmente que isso mudou, sabe-se lá que sítios sujos tocou essa pele. Mais vale usar os dedos para escolher alguém que saibamos de antemão ter uma pele limpinha e se possível virgem, um ecrã de telemóvel é conhecido por ser extremamente assiado.
Enfim, resta-me, em jeito de contraponto, falar de um louco que conheci, muito estranho, cheio de hábitos que se contradizem então compreendo como os tem.
O Fernando, o ciclista. Querem la ver que este homem "louco" conduz uma bicicleta? Que se deslocava medindo quilómetros? Centenas de quilómetros?
E vejam, mais grave que isso, ele afirma a pés juntos apreciar paisagens nesses seus passeios. O parvo, vejam lá, prefere chatear-se a sair de casa, e possivelmente apanhar com todas os aborrecidos adereços meteorológico em vez de ir a um pc ou smartphone, só para apreciar uma paisagem "ao vivo".
Mais grave. O Fernando escreve poesia. Só há dois tipos de pessoas que escrevem, ou escreviam, poesia. Os mortos e os loucos.
Mas o que me espantou mais ainda, mais que tudo, uma das coisas que ultimamente mais me tem deixado interrogado, vejam lá bem, a parvoíce, a indecência, foi vê-lo apaixonar-se.
Verdadeiramente apaixonado, pois apesar de o estar, disso eu tenho a certeza, já cá ando há uns anos, pelo menos 26, sei ver quando um louco se apaixona, estava apaixonado e não o dizia a ninguém. Guardava para ele. Imaginem-no, ao louco, ao parvo, de madrugada a não conseguir dormir por pensar na sua amada, a acordar cedo, mais cedo, se fosse necessário, seria o primeiro Homem a acordar em todo o mundo, só para te uma centelha de vislumbre dela, sem ser num ecrã, ao vivo, que só da mais trabalho, mas só para que o rosto dela fosse uma presença e não um sonho, para sentir que se estendesse o braço lhe tocava, ainda que por vergonha, não o fizesse. Um louco apaixonar-se devia ser proibido. Pelo menos é o que me dizem. Aliás, dizem-me muita coisa, mesmo muita, daquilo que deve ser, principalmente dizem-me sempre tudo o que deve ser, particularmente o que devem ser as pessoas, quais devem ser as diferenças entre um Homem "normal" e um Homem "louco".
Desconfio que se mostrasse este texto ao Fernando ele me diria depois de o ler com afinco, calmamente, ao seu jeito, que só tinha certeza de uma coisa.
Que esses senhores e senhoras, os que dizem que as coisas "Devem Ser" são, eles sim, os verdadeiros loucos. Que é o amor que cura a loucura, ou pelo menos o que nos impede de enlouquecer.
Bem, eu, honestamente, se ele me dissesse tal coisa. estaria confuso.
Mas devo admitir. Dá-me um gozo tremendo ter um aluno destes, como o Fernando, o ciclista, um verdadeiro louco em vias de extinção, um daqueles que se apaixonam. Que se apaixonam a sério. Dá vontade de fazer mesmo não é?