quinta-feira, 27 de julho de 2017

Diário de bordo #8 - 09-01-2017 Toque de Midas

Em resposta a uma observação de um anónimo, adjacente à aula do dia 9.
Pergunto-me se o ouro que surge do toque do Rei Midas é de igual valor ao restante.
Uma pintura. Se soubermos que uma outra mão, que não a do artista, lhe tocou, seremos capazes de definir, com certeza, a autoria da mesma, a uma só pessoa?
É evidente que eu toco em alguns dos quadros dos meus alunos, lhes dou uns "retoques", como uma das senhoras mais velhas do grupo baptizou esse meu gesto, continuamente repetido.
Ora por eles me pedirem auxilio, ora por deliberada e autonomamente o decido fazer, procedo com o gesto.
Não querendo de todo auto-intitular-me de Midas, a metáfora serve outro mote, é-me, todavia, impossível distanciar da ideia de que estou a contaminar as obras dos alunos.
Interrogo-me, será isso tão importante? Será esse meu toque tão putrefacto ao ponto de interferir na leitura da obra como sendo da autoria do aluno?
Recapitulemos uma ideia antes assente, nos primórdios do aparecimento destas oficinas de Arte, com uma questão, subdividida em duas.
Afinal, o objectivo deste projecto é, no seu sentido mais nuclear e profundo, o de formar artistas plásticos, ou o de proporcionar a estas pessoas pequenos e segmentados laivos de felicidade? O que pesa mais, os segundos parcos que o meu toque efectivou na tela, ou toda a superação psicológica que pessoas, muitas delas com uma latente dificuldade em se exprimir quer verbalmente ou por escrito, o conseguirem fazer, a vitória que é conseguirem precisamente exprimir-se, armados de tintas e pincéis?
Parece-me que ambas são questões de resposta evidente.
O meu papel não é o de transformar nenhuma das pinturas em ouro. É antes o de tentar mostrar a estas pessoas que o importante não é resultado do toque, mas antes o mecanismo através do qual é exacerbada a vontade de uma expressão, precisamente aquando e durante esse mesmo toque, não meu, mas o deles, qual grupo de reis e rainhas Midas, armados e adornados de vontades colossais.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Diário de bordo #8 - 09-01-2017 O elogio ao campino



Uma das aluna terminou a sua tela. Pintara um capino, montado no seu cavalo.
O processo, todavia, adornara-se de alguns solavancos.
Para ser totalmente honesto, momentos houve em que achei que ela fosse desistir. Já no desenho se havia confrontado com essa mesmíssima vontade, tendo-a verbalizado a mim e a uma das terapeutas que acompanham o projecto. Não nego que me foi difícil tentar dissuadi-la a não o fazer, reconheço a minha ainda gritante inexperiência no que toca a lidar com este tipo de dificuldades, sejam elas adjacentes ao outros ou a mim próprio.
A verdade é que, seja ela justificada pelas minhas reconhecidamente negligentes tentativas de a convencer a continuar, seja pela vontade intrínseca da aluna, seja pela força de terceiros cuja existência desconheço, ou por profissionais que a auxiliam no seu tratamento. ou ainda por uma outra qualquer razão que desconheço, no fim, a alavanca da persistência fora activada, qual mecanismo mental de perseverança indecifrável.
Foi nesta aula, posterior à tal em que ela havia finalizado a pintura, que a aluna surgiu com uma questão, justificada por uma observação que lhe fora feita fora das aulas.
Tomemos a liberdade de a tratar por MJ, "aluna" acaba por ser sempre uma formalidade que a mim me enerva um pouco, um pouco como no geral as formalidades tendem a despertar esse meu lado mais repulso. Ora, MJ afirmara que já inúmeras pessoas a haviam confrontado com uma ou mais observações em relação ao seu trabalho do campino, que concluiu na aula anterior. De uma forma geral, essas mesmas observações eram baseadas na ideia de que o mesmo estava explendido, que se pudessem, o comprariam. A expressão da MJ foi, se bem me recordo, foi a de que "muita gente" o tinha dito, dando portanto a entender que tinha sido visto já por um vasto leque de público.
Vinha radiante, sorridente, luminosa de uma maneira como nunca a tinha visto, muito embora ainda há pouco mais de um mês a tivesse conhecido.
Pois bem, a tal questão que afirmei existir, e que ela me colocou, estando a mesma inerente a esses elogios proferidos, era muito simples: onde tinham essas pessoas visto o quadro, para poderem ter feito esses comentários, se a tela do campino não se tinha movido um centímetro do lugar onde tinha sido deixado quando terminada?
A hipótese das redes sociais era a mais evidente. O que MJ queria, no fundo, era saber como chegar a esse tal lugar, onde estaria uma reprodução digital da obra, para que a pudesse mostrar à sua filha. Uma nobre ideia, que tenho a certeza que poderia aumentar ainda mais o tal radioso e guloso sorriso que ela ostentou durante toda a aula. Peguei no meu pc, investiguei a página do facebook do projecto, e, após tentar, na minha posição de leigo electrotécnico, de infoexcluido quase, posição um tanto ou quanto duvidosa, portanto, no que toca a obter resultados positivos neste tipo de demandas virtuais, falhei miseravelmente. Não havia em nenhuma das foto a reprodução virtual do quadro do campino. Apenas numa delas, um tanto ou quanto desfocada, devo assumi-lo, se podia vislumbrar os resquícios dos ainda primeiros esboços da mesma.
Que faria eu? Sentia que devia a MJ a obtenção desse tal link. Um link diferente, porque não se dirigia a abrir um site, um artigo, uma foto, mas antes um sentimento de felicidade. O da partilha, com aqueles que amamos. É lugar comum citarmos de forma leviana a tal frase de Chritopher Mccandless ("Into the Wild") "happiness is only real when shared". É ridículo extrapolar esta ideia, mas a verdade é que ME senti uma espécie de Christopher Mccandless, no leito da sua morte, quase desesperado por perceber que a solidão é um contraste à felicidade. Mais ridículo era ainda o facto de que, objectivamente, esta incapacidade derivava da constatação ridícula de uma inexistência de um sitio onde pudesse encontrar a fonte dos tais elogios à MJ.
E claro, na minha incapacidade argumentativa, que embora melhorada com o crescer deste projecto e do contracto com os meus alunos, ainda assim, uma incapacidade, acabei por não conseguir encontrar forma de lhe justificar a inexistência da foto do campino. Dei-lhe o link da página do projecto, que como já tinha visto não tinha qualquer foto do quadro, qual cobarde da retórica, de forma a descartar a minha responsabilidade, tentando ganhar algum tempo para solucionar o problema. Nós, humanos, pelo pouco ainda que me apercebi da nossa natureza, tendemos a colocar a sujidade debaixo do tapete, não assumindo as nossas responsabilidade perante os outros. Foi nesse miserável estado que me senti no final da aula. O tal sentimento de limpar as mãos da poeira foi tão efémero quanto ridículo.
No fundo, trata-se de uma confissão, que poucas vezes fazemos. Mesmo que por bons motivos, por vezes somos ridiculamente cobardes, particularmente quando pensamos que os outros poderão julgar a nossa, as nossas, eventuais falhas, os nossos eventuais defeitos.
Espero, contudo, que com tempo, que com este projecto, que com o contacto com estas pessoas possa vir a suplantar esse meu lado prosaico.
E continua a ser um mistério para mim onde raio poderá existir a fonte para o aparecimento dos elogios ao campino. Se não a encontrar nos próximos dias, e em jeito de redenção, tratarei de criar eu uma.