sábado, 4 de fevereiro de 2017

Diário de Bordo #5 - 19-12-2016 -A metafísica da ausência de cor


 Terminei à minutos uma pintura. É de madrugada, sentei-me no sofá para a contemplar. Cliché dos Clichés, pus "The dark side of the moon", dos Pink Floyd, a tocar. Isto porque na minha singela opinião, uma verdadeira contemplação, seja de um quadro, de uma mulher bonita, de uma noite sem nuvens, só atinge o seu auge ao som da melancolia destes tipos que eu anda não sei bem como foram aterrar neste planeta, através daqueles longos solos sem voz, quase a fazer lembrar as viagens espaciais na primeira pessoa que podemos ver em filmes como o "2001: Odisseia no espaço", "Star Trek", ente inúmeros outros dos áureos anos em que a ficção científica era uma espécie de incentivo a sonhar (não vivi esses tempos mas devem ter sido porreiros).
Ora, mas voltando a esse meu momento contemplativo, aquando do mesmo, veio à instrumentalização do meu pensamento uma conversa que tive com o André Rosa, um dos meus alunos, na aula desta manhã. Foi a primeira com pastel de óleo, a primeira em que usamos a cor. Portanto, eu decidi introduzir de forma muito sintética alguma da teoria ligada às questões cromáticas, coisas simples, noções básicas.
A certa altura, falo da cor preta, ou melhor, falo da inexistência da cor preta, o que para alguns alunos foi uma estranha forma de caracterizá-la. Ao passo que o branco é a junção de todas as cores, o preto, ou melhor, a condição do preto é precisamente a ausência de qualquer tipo de cor. Claro que esta definição ultrapassa um pouco a explicação básica da questão cromática, eu poderia simplesmente dizer que o preto é mais uma cor, "Está aqui neste tubo, como podem ver", "deve ser usada com precaução pois absorve o olhar da pessoa ao observar e contemplar um quadro". Mas eu decidi arriscar e ir um pouco mais além na definição para poder ver qual seria a reacção da turma.
Não recordo exactamente quais foram as palavras, sei que numa troca de ideias, curta, com  o André, surge em cima da mesa a ideia de que o vazio, essa ausência de cor, é um conceito que nos, Humanos, não compreendemos, ou seja, há determinados aspectos que nos são de tal forma abstractos que temos uma necessidade de nos afastar deles. Talvez por receio, talvez por medo de nunca os conseguirmos entender, enfim, eu apesar de querer ter continuado a trocar ideias com ele em relação ao assunto não o fiz porque tinha medo que a conversa de prolongasse demasiado, e entrasse em questões que depois não poderíamos evitar fugir, e precisava de encurtar o meu discurso pois já o tinha alongado demasiado. Disse ao André´, meio a sorrir, que decerto, entrando por vias mais metafisicas, iríamos ter "pano para mangas" no que troca a uma troca de impressões, seria uma conversa que poderíamos retomar mais tarde.
É curioso que o André é um tanto ou quanto reservado. No entanto, de todas as vezes que falo com ele ou que tento imaginar o que ele possa estar a pensar, há algo tremendamente intrigante que desperta a minha vontade em poder debater mais vezes ideias e temas com ele. Segunda a minha forma de encarar isto do que é a nossa efémera existência, há pessoas que "sabem um pouco mais que o comum dos mortais", às vezes não sendo preciso que digam nada, reformulando, a maioria das vezes não precisando de dizer nada. E ele é definitivamente uma dessas pessoas.
No entanto, ao lembrar-me desse tal conceito de ausência de cor, veio-me à memória um outro episódio, dessa mesma aula.
A Antónia, Lança de apelido, é uma das alunas mais entusiastas, mais cheias de vida. Fazendo um paralelismo a esta introdução cromática, um dos focos desta crónica, os poros da pele dela parecem tubos de tinta sem tampa, cada um de uma cor única. Nesta aula ela trouxe-me, cheia de orgulho e alegria, um exemplar do jornal "O Mirante", no qual estava publicada uma entrevista que ela tinha dado. Deixo aqui o link para quem quiser ver (aconselho vivamente a que o façam)

http://omirante.pt/semanario/2016-11-17/aniversario/2016-11-16-Considero-me-uma-guerreira--ou-nao-tivesse-Lanca-no-nome

Não querendo entrar em detalhes da vida pessoal dela, particularmente de situações que ela ainda hoje vive, a Antónia já atravessou inúmeras barreiras, desafios, coisas que isoladas deitariam abaixo o comum dos mortais, coisas que se forem propostas a alguém são de imediato descartadas pelo medo e pela falta de coragem. Ela, no entanto, enfrenta e agarra cada pequena oferta que lhe dão com uma força e uma capacidade de se entranhar no lado positivo da mesma de uma forma que eu nunca tinha visto. `É um privilégio supremo poder partilhar um espaço com ela, ter uma conversa com ela, ouvir um dos poemas que ela sabe de memória, mais ainda poder mostrar-lhe algo que ela desconhecia, a pintura, e que lhe tem um prazer tremendo.
Essas dificuldades que ela enfrentou e enfrenta, para algumas pessoas são encaradas como uma manifestação real do conceito metafisico e abstracto do vazio. Acabam por ser engolida, pelo mesmo. Começam a odiar a cor, começam a encarar o negro como o único caminho. A Antónia teve a suprema capacidade de ignorar qualquer tipo de metafisicismo à volta disso. O preto, para ela, é só mais uma cor. Uma que se usa menos porque estraga a pintura (concelho que retenho desde as belas artes). A vida da Antónia, na realidade, está carregada de cor que ela própria vai aplicando diariamente, em doses seguramente elevadas (ah e com eu gosto de textura na pintura). Conheço muito poucas pessoas que dominem tão bem a roda cromática como ela. Nesse ponto, tem sido ela a professora, e eu o aluno.
E da próxima vez que eu e o André debatermos de forma mais prolongada o contexto metafísico do vazio, vou introduzir nesse mesmo debate este exemplo. Acho que é um bom ponto de partida. Até podia ser um título para um artigo publicado numa revista científica de física quântica. Ora vejam lá:
"Antónia Lança, a mulher que desafia fisicos, astrofisicos e filósofos quando lhes diz que o conceito de ausência de cor, do tal vazio, é (imaginando a voz dela a proferir estas últimas palavras) "uma grandessíssima treta".