terça-feira, 6 de junho de 2017

Diário de Bordo #7 -05-01-2017 - A Grelha



Há um artificio auxiliar da pintura, a grelha, uma divisão prévia em quadrados, que tem o intuito de facilitar o desenho base, quando assim é entendido por parte do artista.
Há duas formas de encarar este procedimento.
Uma aprendizagem passageira.
Uma prisão.
A ideia de prisão vem mais tardiamente. Aliás, é posterior ao conceito de aprendizagem. Ou seja, o que primeiro passa por algo que auxilia, acaba por se transformar em algo sem o qual não conseguimos agir, a tal prisão, onde acabamos por nos enclausurar. Portanto, todos os que tomam conhecimento de, e aplicam esta grelha, começam por encarar como um processo auxiliar como algo libertador, no sentido em que sustenta os primeiros passos em algo que até então desconheciam, que tinham pouco contacto. No entanto, há quem, com o tempo, tome o gosto transfigurando uma passagem  num vicio que dificilmente se larga.
Tenho vindo a aperceber-me desta ideia, a de o apego ser adjacente a algo que tomamos à priori como sendo bom e efémero. Por inúmeras e tão diferentes situações que vejo e presencio. É como se o ser humano apresentasse já na tábua de nascença uma predisposição para o conforto do hábito. Assim como um artista que se funde e coabita num único estilo que cria e usufrui de forma permanente e continua, ou um ladrão que não consegue parar de roubar, ou um futebolista que se habitua a marcar penaltis de uma determinada forma, não conseguindo evitar chutar sempre para o mesmo lado. Isto leva a que dificilmente o publico se surpreenda com o trabalho futuro desse tal artista, ou que as pessoas que sempre que passem perto do ladrão não evitem esconder os objectos pessoais, por medo que ele os roube, e ainda que o guarda redes adivinhe sempre o mesmo lado para onde o futebolista vai atirar. Ou seja, também os outros adquirem o hábito que é a consequência de um outro hábito. Portanto, e não querendo descobrir a lei universal que rege a nossa existência e a nossa forma de agir, até porque seria ignorância assumir que tal é uma realidade, até porque aquilo que escrevo é um dado adquirido, reflexivo, mas adquirido. Os hábitos condicionam afirmativamente o aparecimento de outros hábitos, seja pelo julgamento alheio, ou pelo simples facto de adquirirmos mecanismos quase robóticos, mecânicos, activados de forma automática.
Pegando nisso mesmo, no automatismo inerente ao hábito, é estranho constatar que a nossa evolução é tão contraditória no que a esse factor diz respeito. O homem avança, evolui, porque contraria a sua habituação à sua própria existência, e a tudo o que isso implica. A Terra de plana, passa a redonda. Os corpos mortos foram abertos e dissecados numa altura em que tal implicava cometer um crime, quando o lugar dos mesmos era o de bem enterrados, debaixo da terra. Quando os mares eram considerados os caminhos directos para o abismo, houve aqueles que ousaram atravessá-los, contrariando religiões amplamente e fortemente instaladas e consideradas como verdades absolutas. E quando a lua parecia um lugar tão surreal de tocar como o mundo das maravilhas de Alice e de Lewis Carrol, pés humanos calçados em botas astronautas só não foram ouvidos tocar o solo desse corpo espacial noctívago nas gravações realizadas ela NASA porque esse dito corpo não tem atmosfera por onde o som se propague.
No fundo, é contrariando essa nossa tendência, a de estabilizarmos aquilo que fazemos e aquilo que pensamos naquilo que somos, na determinação de contrariar uma propensão para a estabilização que surge o passo seguinte. É da quebra que surge o avanço.
Isto tudo para dizer que os meus alunos começaram a usar a grelha, por sugestão minha, de forma a os ajudar para outros voos, pois hoje foi a primeira aula de pintura, para muitos a primeira vez que contactaram com a sublimidade da tela em branco.
Espero que não se prendam nas linhas pretas dos quadrados planos. Lutarei para que não o façam.