domingo, 22 de outubro de 2017

Diário de bordo #9 - 12-01-2017 Almoço e Barceló


- Professor, isto afinal acaba quando? As aulas, quando acabam?
- Já não falta muito, é no final do próximo mês.
- Já! ... então e depois o que vamos nós fazer? Já não vão haver mais aulas de pintura?
- Não sei... à partida não, este projecto é só de um ano... mas, talvez haja possibilidade de continuar, se houver fundos. Eles lá no Hospital estão a tentar.
- Mas o professor vai continuar também? Se houver vai continuar?
- Provavelmente não... não sei... por um lado gostava, claro, mas há outras coisas que queria fazer.
- Ser psicólogo? Vai acabar o curso de psicologia?
- Não, não, eu não quero nem devo ser psicólogo, sou artista. Mas o curso devo acabar sim.
- Mas então se o professor se vai embora, devíamos fazer um almoço todos.
- Claro. Claro que sim, acho uma óptima ideia juntarmo-nos todos para um almoço.
- E se não houver mais aulas depois, o que vamos fazer?
- Não sei... mas claro que não devem parar, podem sempre continuar em casa.
- Em casa não gosto. Aqui é melhor, nas aulas. Mas então que coisas quer o professor fazer?
- Que coisas? Não sei...
Ou porventura até saberei, mas não as posso dizer. Por medo de as não conseguir realizar, porque se as disser em voz alta, elas saltam do esconderijo que é o meu pensamento, o  meu sonho, materializam-se em palavras que mais não podem ser apagadas. As palavras despem o manto de invisibilidade dos nossos desejos. Desmascaram-nos, e como todos os vêem, deixam de ser especiais.
Mas há um livro que folheio muitas vezes, foi-me ofertado por um velho amigo, que guardo no tal sitio de onde as palavras se predispõem a atacar. Esse livro, uma espécie de catalogo fotográfico da cronologia existencial de um artista, Miquel Barceló, mostra como ele deambulou de atelier em atelier, de pais em pais, pintando livremente tudo aquilo que absorvia com uma força tal que as fotografias parecem explodir de emoção. As cores deixam de ser cor e tornam-se quase existências tridimensionais. Pinturas e desenhos que lutam para ganhar vida e pernas.
Para além de pincéis e telas, o artista viaja com e nas malas carregadas de livros de Hemingway, Cormac McCarthy, Virginia Wolf, usados e gastos, tal qual eu gosto verdadeiramente de os ver.
Folheio este livro nos momentos. Nunca o vi de uma ponta a outra. É sempre na intermitência de pensar, na tal alternância que o nosso pensamento e a nossa consciência nos obriga a adquirir a fim de esclarecermos em actos a nossa frágil existência, a nossa frágil instabilidade que nos obriga a repensar os actos, mas sobretudo as vontades, que suplantando o medo, se transfiguram em sonhos.
E é isto. Mais dizer que isto é transfigurar a invisibilidade numa nudez demasiado gratuita.