domingo, 30 de abril de 2017

Diário de Bordo #6 -03-01-2017 - O Muro e a Pedra

Recuo. Procura uma referência literária ou cinematográfica que embeleze o inicio deste texto, mas não a encontro. Prefiro desprender-me desses adornos e focar-me na natureza da consciência humana.
Escrevo este diário de bordo já dias, semanas até, depois de ter acontecido. Nesse dia, deparo-me com a crueza da realidade de duas das minhas alunas quererem desistir. Embora obstáculos tenham surgido, em relação a alguns dos exercícios, ou mesmo a algumas das técnicas que lhes mostrei, o confronto verbal, este em particular, quando adornado da mensagem que elas me transmitiram, é sempre um choque de uma violência tremenda. Há um calor incómodo, pesado, que se instala no peito, não na nuca, no peito. Isto faz-me pensar que por vezes a abstracção e a apatia poderiam comandar a nossa acção e tornarem-se em mecanismos de defesa. E acredito piamente que há quem consiga ter a sorte de usufruir dessa ferramenta de emancipação da dor. No meu caso, no entanto, tal nunca se verificou, muito menos nesta situação.
Foto de João Maria Ferreira.Fiquei a aula a remoer, como diz a minha avó, a remoer nessa ferida aberta por um desabafo que sendo honesto o é no seu sentido meio vazio do copo. É assim que as adversidades surgem, sem aviso prévio, como se de um corpo gigante, que não se importa de estalar o chão sobre o qual caminha, de forma desengonçada e pesada, se tratasse.
Sai de rastos da aula. Havia sofrido a primeira pancada verdadeira neste projecto. Seria mentira se dissesse que nas horas seguintes tinha tudo corrido de forma normal, não, a verdade é que o meu estado de espírito normalizado foi descontinuado. Roubando outra expressão da minha querida avó, andei a bater com a testa na parede, já depois de fazer ferida, mas decidi-me. Decidi que não ia deixar que a tal adversidade desengonçada levasse a melhor. De tudo faria para que as duas alunas continuassem. E se no fim esse esforço fosse insuficiente, jurei para mim que o conservaria na tal gaveta que guarda os esforços que estando ligados ao insucesso se apresentavam como insuperáveis, nada poderia ser feio para que os mesmos fossem superiores. Daria, portanto, o meu melhor para que elas continuassem.
Estamos tão certos de que as etapas mais negativas são tão poucas que nunca nos habituamos às mesmas. É como aquela velha história do ser humano se adaptar a tudo o que lhe dão, quando uma coisa má começa a surgir com mais frequência passa a ser encarada como normal. Haverá sempre algo pior, A questão é precisamente quando esse pior surge. Surge tão pouco que quando surge é com um apetite e força vorazes. São muros. Mas serão escalados, e se o  forem, serão inevitavelmente em companhia, sozinhos são intransponíveis.
No caso do meu, o que acima surgiu, terá de ser feito a três. Uma expedição e um jovem imberbe e duas senhoras convictas de que esse mesmo jovem não as conseguirá ajudar.
Que me dizem minhas senhoras? Subir o tal muro aparentemente intransponível?
Sisifo subia levando a pedra, que repetidamente rolava encosta abaixo, e que o mesmo Sísifo voltava a empurrar. Era um cume que ele atingia eternamente, se virmos a situação de um outro prisma. Não será, portanto, esse o truque? Atingir o mesmo cume de forma eterna e convicta?