sábado, 11 de março de 2017

Diário de Bordo #6 -22-12-2016 - Toulouse-Lautrec e as três mademoiselles portuguesas



Andava a passar olho por um livro com fotografias de pinturas do Toulouse-Lautrec, o tão infame triperna francês, um dos que se predispôs e teve a audácia de, e a bom tempo o fez, tentar pintar a alma da mulher. Não há muitos que na minha humilde forma de encarar isto da Arte tenham conseguido com pinceladas a óleo e riscos a pastel captar essa essência, esse mistério e enigma que é o sexo feminino.
Foi do ambiente da Paris em que Toulouse deambulava, dos bares e dos cabarés, das cores e, precisamente, das mulheres, que me veio há mente, essa atmosfera interligando-a à aula de hoje, mais especificamente a três das alunas. Essa atmosfera não deve ser encarada como uma série de elementos autónomos, mas antes como um ecossistema efervescente de uma massa rica e amorfa.
Imagine-se que numa máquina que voa de, e no tempo, nos deslocamos e temos a sorte de nos podermos passear pela zona de Montparnasse da Paris francesa dos anos 30, na década de ouro dos cabarés e das mulheres que poderosamente ostentavam acessórios extravagantes, vestidos incandescentes, mas sobretudo as tais que se notabilizavam por ter uma forma de estar e de sentir libertadora e poderosa, ainda que subtilmente atenuada pelos pintores impressionistas, que bêbados deambulavam de forma alternada entre as ruas escuras e as salas extravagantes dos inúmeros bares. A tal massa amorfa.
Agora imaginem que três dessas poderosas e sofisticadas senhoras, que com lenços e penas decidiam pois apanhar boleia nessa nossa máquina do tempo e acompanham-nos ao nosso presente, o tal que uns apelidam de uma transição momentânea de momentos, passando a redundância. E imagine-se que essas três senhoras, por obra do acaso e de uma misteriosa vontade, decidem entrar no atelier de pintura do convento de São Francisco, precisamente o tal onde se encontra a caverna da andorinha. E decidem fazê-lo com uma graciosidade tal que ainda me pergunto como não planaram ao invés de pisarem o solo da primeira vez que as vi entrarem.
Falo pois da Manuela, da Madalena e da Carla. Três senhoras que apesar de bem portuguesas ostentam o tal je ne sequois muito próprio de uma Paris que se transfigurou desde esses intensos anos de liberdade e de descoberta da mesma.
São três gatos persas. São três ladies, no seu sentido mais tácito, o tal de sentido silencioso, mas simultaneamente imperial.
Ainda que as agrupe desta forma, nesta categoria, elas são, na verdade, três pessoas categoricamente diferentes.
A Madalena é doce, insegura e sorridente. Mas a sua é uma insegurança charmosa, não das que nos afastam, mas antes das que nos puxam de forma a confortá-la, acariciando tudo aquilo que aparentemente parece ser demasiado leve para se suster por si só.
A Manuela tem um olhar profundo, quase que podemos cheirar e tactear a sua alma possante. É portanto uma mulher que já usufruiu inúmeras vezes da sua força, conseguindo simultaneamente emanar uma calma e um cuidado humano muito próprios, que são, acima de tudo, reconfortantes.
Já a Carla é de uma alegria muito natural, ainda assim, também muito pontual. Quando ri e sorri afecta todo e qualquer centímetro quadrado da sala. Não sabendo muito bem porquê, o seu bom dia é sempre adornado de uma peculiaridade encantadora, que me aquece a mim e aos alunos.
É bem verdade um outro ponto. Estas três senhoras terão inevitavelmente sofrido a sua quota parte. Lado a lado com as impressões enumeradas, há sempre uma pequena centelha de solidão . A bem ver, todos nós a temos, só nos apercebemos que os outros também a têm quando começamos a empatizar com eles de forma honesta. Acho que é portanto um dos papéis desta coisa que é a Arte fazer dessa solidão um local de desconforto confortável. Um pouco como acontece com os artistas, criando o acto de isolamento, uma espécie de casulo onde a tal lagarta se metamorfoseia em uma outra coisa, tal como o Toulouse-Lautrec. que exorcizou défice que ostentava o tamanho físico, a sua dificuldade em se relacionar com o corpo da mulher, numa selvajaria brilhante no confronto que tinha constantemente com a tela em branco, na sua solidão também ela selvática.
Esta foi a última aula do ano. O semestre ainda nem a meio chegou e já sinto que entrei num Universo paralelo, lá está, num casulo onde aprendo e me transfiguro de forma crescente. Para tal, contribuem, acima de tudo, pessoas como estas três senhoras, a Manuela, a Madalena e a Carla, que me relembram que há formas de estar na vida que podem ser intemporais, sem que percam a magia da sua unicidade. E agora que falo no Lautrec, o tal pintor que se agigantou, e depois de toda esta atmosfera, deu-me a vontade de ouvir uma outra figura que mesmo sendo tão pequena não teve medo de saltar para tentar tocar nas estrelas.
Uma tal de Edith Piaf, estão recordados?