terça-feira, 24 de setembro de 2019

Diário de bordo - A mancha cor de rosa no fundo negro da Guernica

- Não conheço o Picasso professor.
- Ah eu conheço muito bem, professor. Tenho um livro e tudo, assim grande, a capa muito bonita, azul escura com riscas vermelhas. É daquela editora, de livros de pintura, aquela muito conhecida, como se chama...
- A Taschen?
- Isso mesmo, a Taschen! Tenho muitos livros dessa editora.
- Trazes Florbela? É que do Picasso só conheço a Guernica, professor. Podes trazer Florbela?
- Claro! 
- Faça isso Florbela, traga para vermos aqui na aula e investigar um pouco mais do trabalho dele. 
- Então vou trazer!
- Boa, que bom! Mas professor, e a Guernica? Já a viu ao vivo professor?
- Sim, sim, é tremenda, enorme, tive a sorte de já a ver duas vezes, em Madrid. É do tamanho, deixa cá ver... olha, do tamanho daquela parede ali ao fundo.
- Uau, é mesmo enorme. E é bonita? 
- É muito bonita, imponente. E sabes, ele não teve medo de deixar os riscos a lápis dos múltiplos rascunhos que fez, como se nunca a tivesse terminado. Sinto que essa intenção talvez tenha sido como que um aviso que nos deixou a nós, às gerações que vieram a seguir a ele, em relação àquilo que representa, a guerra, o sofrimento, a violência, que infelizmente continua em muitos lugares do mundo. 
- Acho que percebo, professor. Eu tenho, sabe, tenho medo de me aproximar de pinturas assim tão importantes. Tenho medo de lhes tocar sem querer e as estragar, ou de repente de pegar num lápis, num pincel com tinta, e as estragar. 
- Ora essa Maria, não tens de ter medo. A arte é feita para nos aproximarmos dela, é uma parte daquilo que somos.
- Sim, mas os loucos são menos do que os outros professor. Acho que nascemos sem direitos, ou melhor, com menos direitos, pelo menos assim o senti durante toda a vida. 
- Não digas essas coisas Maria, não és louca e muito menos tens menos direitos que as outras pessoas. E quem te disser o contrário nem merece que percas um segundo a pensar nela.
- Mas professor, quem sabe se essas pessoas não têm razão? Imagine que de repente um maluco, um louco, se lembra de pegar num pincel com tinta e fazer um risco, um desenho, uma macha, por cima de uma obra importante como a Guernica. O louco não consegue controlar essa vontade e acaba mesmo por fazê-lo se tiver próximo da pintura. Se fosse outra pessoa que não o louco, mesmo que tivesse essa mesma vontade, não o faria porque não era louco. Mas imagine agora que essa mancha era mesmo real. Ora, quer tivesse vindo de um louco ou dessa outra pessoa, a macha seria a mesma, o castigo seria o mesmo, não interessaria de onde tinha vindo essa vontade, se seria racional ou irracional. Portanto, professor, como a mancha é igual, nós, os loucos, que não controlamos a vontade de a fazer, não podemos aproximar-nos dos quadros. 
(silêncio)
- Maria... mesmo entendendo o que dizes, eu vou continuar a acreditar que todos temos direito a aproximar-nos de um quadro, independentemente da sermos, como tu dizes, um louco. 
- Pois eu cá prefiro não o fazer, professor. Olhe, ainda ontem sonhei com a Guernica, sonhei em pintar no seu fundo negro uma mancha cor de rosa. Peguei no pincel e no tubo de tinta, já com essa vontade a dominar-me. Só não concretizei a minha vontade por estar longe. Por isso professor, como lhe disse, não me hei-de aproximar nunca da Guernica por poder enchê-la e manchas cor de rosa. 
- Percebo-te, mas em tua defesa, em defesa dos "loucos", como tu te auto-intitulas, há por ai muitos quadros que mereciam uma dessas tuas manchas cor de rosa. E olha que talvez a Guernica pudesse ser um deles.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Diário de bordo - o regresso


O banco do autocarro sem ar condicionado queimava as costas que a camisa de inverno cobria com a sofreguidão da contradição, infinitas vezes avisada pela mãe, de estar a ser erradamente usada durante o verão. O sol amarelo, que adorna o início das tardes de fim de Agosto, anunciava sem precisar de falar a sua presença, a de um corpo celeste, uma estrela finita que no tempo que tem de vida não hesita em recordar ao frágil homem a sua força.
O sono, esse, acompanhando o silêncio da estrela maior, pesava mais no corpo, que caído num banho de suor meloso, se digladiava entre a vontade em se manter hirto e a queda abrupta na escuridão. A aula permanecia no limbo que habitava a fronteira entre os dois.
Os sapatos rosa com laçarotes de veludo entraram na sala. Quebraram a ânsia de perceber se a Maria voltaria ao curso. Felizmente, assim foi, e as vozes, boas e más, haveriam de ser uma vez mais colocadas no seu devido lugar.
O reencontro é uma de duas formas que adornam a surpresa, desta feita, uma que acaba sempre por nos ser familiar, ao contrário da outra, que implica a singularidade da novidade.
Todavia, quando o reencontro deixa de ser surpresa, ele passa a ser banal. Um pouco como as campanhas do regresso às aulas, que se entranham na felicidade das férias e relembram aos putos que mais um ano virá, e que a efemeridade é uma constante incontrariável. O sol pode ser quente e gordo mas acaba sempre por desaparecer para depois voltar.
O mesmo sentimento ocorre ao sabermos antecipadamente, numa escolha racional, que vamos ver a mulher que amamos naquele sitio, naquele instante, quando já repetimos infinitas vezes num loop mental o beijo que lhe damos e o toque que dela recebemos. Tal passa a ser, embora genuinamente bom, a mera conclusão dessa ânsia, ao passo que a surpresa de a avistarmos sem que tal fosse anunciado é a tal chama ardente que tantos loucos falaram e tentaram, sem nunca o conseguirem, descrever, pois é uma impossibilidade outra coisa senão o sentir.
Isto tudo para dizer que o Incluir está de volta e que estou feliz de poder mais uma vez ter sono e vestir camisas quentes na altura do ano em que as mesmas deviam envolver traças e pó de armário. E os diários de bordo estão definitivamente, com a surpresa da familiaridade do regresso, de volta.