domingo, 18 de dezembro de 2016

Diário de Bordo #1 - 2-12-2016 - A lebre e o Porco



A primeira coisa que ouvimos foi a andorinha.
Alguns viram-na, outros nem por isso, mas quando o ouvido é apurado a visão deixa de contar.
Cheguei cedo. Tão cedo que esperei dentro o carro ainda uns minutos, ansioso.
Depois foi tudo uma corrente contínua de obrigações, frases honestas, nervosismos, pequenos erros, e aquelas centelhas vitoriosas que empurram tudo isso no mesmo sentido.
Mas o que eles, os alunos, repararam, de imediato, assim que entraram na caverna, foi a andorinha, o cantar da andorinha. Ficamos sem saber se era ali o seu ninho. Todavia, a certeza da sua presença foi reconfortante, por sabermos que a entrada não era um intruso.
Montamos os cavaletes, demorou mais que se esperaria, mas éramos 4 os que trabalhavam nessa tarefa, visto serem também 4 as ferramentas disponíveis. Íamos seguindo as instruções daqueles papeis pequenos que dividem em 3 passos um sistema que muitas vezes preencheria quase que um manual inteiro dada a complexidade de algumas etapas. Enquanto isso os restantes alunos desenhavam coelhos, bailarinas, porcos, havendo ainda flores e barcos. Parte deles a medo, chegando alguns a desistir de tentar, fumavam, para fazer avançar o tempo. Parece-me que para algumas destas pessoas, que já tanto deixaram de existir, que já tanta vida lhes foi sugada, têm o tempo em conta como desprovido de preciosidade. É somente mais um elemento que os acompanha de forma relativamente pacifica, por vezes até indiferente.
Não todos como é evidente.
A minha missão é portanto simples.
Tratar de fazer com que pelo menos nestas aulas eles tentem olhar para o tempo como um elemento raro, um elemento que corre e não anda, algo que não vejam a fugir mas antes que tentem de tudo para agarrar.
Ah, é verdade, a António recitou um poema. Infelizmente a minha memória atraiçoa-me constantemente portanto não consigo transcrever os versos, no entanto falava de autonomia e vontade de seguir-se um caminho independentemente das adversidades. Curioso que uma pessoa que entrou na escola já tardiamente tenha a capacidade fantástica de decorar e escrever mentalmente poesia, em precisar de caneta ou papel. Ou um teclado como é apanágio da modernidade tecnológica
O Filipe, que prefere ser chamado de André, vim a descobrir que estudou arquitectura, tendo quase terminado o curso. Vi de imediato pelos desenhos que ali estava talento. Prometeu trazer-me na próxima aula desenhos dele, da "cabeça dele", segunda o próprio, mas que "não eram nada de especiais", segundo o próprio. Estou no mínimo intrigado para os ver.
Já decorei alguns nomes. A Maria João foi a primeira a inaugurar o material. Desenhou uma bailarina a lápis. O Rodrigo. O senhor Hermínio, que fala sem falar, e mostra um dos maiores medos em riscar que já vi. O André e o Pedro são promissores. A Carla a mesma coisa. A Nô, a Ana Luísa, a Clara. A Madalena.
Não me alongo, terei tempo para falar de todos.


(as imagens que levei impressas na primeira aula, em breve coloco alguns dos resultados)

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