terça-feira, 31 de julho de 2018

Diário de bordo - O zangão e o apiconauta


Naquele dia , o grupo saiu da sala e pintava aquilo que os rodeava, numa das primeiras aulas fora do contexto de oficina interior. Pintavam as árvores, as fachadas, as portas, os telhados, as estátuas. O André, a Florbela, a Marta, o António, o Fernando e o João. O meu papel, era o de ir saltitando pelos vários trabalhos, tentando, com o mínimo de intervenção directa, ajudar a que tomassem um bom rumo.
Atingida a etapa dos retoques finais da tela, dá-se um curioso, ainda que ligeiro, episódio. Uma abelha, de tamanho generoso, pousa no peito do André, mesmo no centro da camisa às riscas azuis claras que naquele dia vestia.
A surpresa de vê-la de repente pousar incutiu a urgência do meu aviso.
- André, olha aí, tens uma abelha enorme mesmo aí no meio da camisa, vê la não deixes que ela te pique!
- Não é uma abelha, professor, é um zangão. É um macho. É maior que as abelhas, e não tem ferrão, não pode morder-me.
Tramou-me com esta. Mas que raio, que outro tipo de resposta poderia eu esperar? Afinal, a grande paixão do André, era precisamente o universo do mel, a apicultura, paixão essa transitória do seu pai, e porventura de gerações a ele antecessoras. Já haviamos falado desse seu gosto, deu para ver, pelos pequenos gestos e olhares, como ele falava daquilo com a paixão que alenta quem descobre desde cedo aquilo que nos impede de sentir o peso das outras coisas que menos gostamos de fazer.
De repente, já o zangão havia há muito retomado a sua odisseia aérea, começou a chuvicar. Estavamos a pintar com acrílicos, não convinha que as telas se molhsassem. Disse ao André e aos outros alunos que devíamos levar de volta as telas e o cavaletes para o atelier.
Assim o fizemos. A maioria do caminho foi feito em silêncio. Não daqueles que nos transtornam e que petrificam o deslocar dos segundos, mas sim dos que tranquilizam, dos raros, que só conseguimos ter com uma porção mínima com aqueles que nos vamos cruzando ao longa da nossa caminhada.
O André é seguramente um dos únicos que conheço a saber diferenciar um zangão de uma abelha, a saber dizer que um zangão não morde (Palavra bem curiosa essa, ter alguem zangado que nao morde). Ao longo destes meses, tenho vindo a aperceber-me que os meus alunos têm esta aptidão de aglomerar saberes que desconheço outros terem. Normalmente, nós só queremos ouvir, integrar e debitar os grandes feitos e conhecimentos. Simultaneamente invejo e admiro a capacidade de amar as pequenas coisas que a maioria dos meus alunos acalenta. Estamos habituados a que esses tais grandes feitos sejam o nosso combustível. A acumulação de canudos é uma obrigção indispensável à  diambulação pela e na sociedade. Os feitos e estratégias que alcançam os bens materiais são óbvios e intrínsecos a qualquer um, aliás, esses bens são o sumo supremo que a nossa existência se vê a exprimir. Saber a diferença entre uma abelha e um zangão é uma mera atribuição causal à inutilidade do saber.
Permitam-me que discorde. Muito embora ninguém viva sem dinheiros, metal, tecladose papelada, não podemos deixar nunca de alimentar a nossa parte que atenta e se expanta com zangões sem ferrões. Perigosamente nos temos tornado ciborges da materialidade objectiva. E embora o pão da mesa seja servido pela radcionalidade, sem ninguém com quem o partilhar e o apareciar de pouco serve. Sem as trivialidades da nossa existência mais abstracta, sem a "inutilidade" das pequenas coisas, então aí somos nós a tornar-nos diminutos.
Serei ridículo? Pois bem, assim seja. O André, a Marta, a Florebela, os meus alunos são singularmente e independentemente ridículos. Que o sejam eternamente. E que cada vez mais me ensinem a sê-lo com maior convicção. A certeza que tenho é que sou cada vez mais eu o aluno e eles os mestres. É a grande lição que tiro desta minha aventura, mesmo sabendo que felizmente o fim dela está longe de chegar.

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